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domingo, 20 de agosto de 2017

Trecho de A Máquina do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade



A Máquina do Mundo
Carlos Drummond de Andrade


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco


se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas


lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,


a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.


Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável


pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.


Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera


e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,


convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,


assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de


teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,


olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,


essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo


se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”


As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge


distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos


e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber


no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,


e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:


e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,


tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.


Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,


a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;


como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face


que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,


passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes


em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,


baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.


A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,


se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.



Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “
MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.

12 comentários:

  1. Querida Elza:
    vim agradecer sua visita tão carinhosa em meu blog . Que lindo este lugar. Poemas tão maravilhosos, Carlos Drummond é tudo de bom.
    Lugar para refletir , ler um poema, refletir e sentir o aroma da vida, o aroma da arte.
    Que lindo mesmo.
    Com o maior prazer já estou seguindo, pois gosto muito de poemas, e estou criando o hábito de incluir poemas em minha leitura, e ler seus posts vai ser maravilhoso para mim.
    Grande abraço , uma semana muito abençoada.
    :o)
    Eliane

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    1. Querida Eliane, fico feliz em t~-la como seguidora do blog, seja bem vinda, todos que fazem a escola, agradecem. Volte sempre. Abraços

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  2. Olá Elza,
    Esse poema é bonito, complexo e forte...
    Postagem ótima: excelente escolha e bela partilha!
    Boa semana! Bjs!

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  3. Oi Elza
    Vim agradecer sua carinhosa visita e conhecer este espaço onde a arte é mola mestra nas suas nuances mais ricas e encantadoras. Chegar e degustar uma pérola do Drummond é ser acarinhada pelo talento do grande poeta e sua generosidade
    Parabéns pelo espaço lindo e pelo excepcional trabalho que realiza ao disseminar a leitura através da literatura
    Beijos e uma semana linda e produtiva

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  4. O mundo é uma máquina. Uma máquina sem dimensão da sua grandeza. Poema mais que belo!

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  5. Poesia linda, adoro esse poeta! Bela escolha! bjs, tudo de bom,chica

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  6. Retribuindo sua gentil visita ao meu blog e apreciando um dos belos poemas de Drumond. Parabéns pelo significativo trabalho que vc e a Lourdes realizam em prol da Literatura e da Cultura de modo geral.Mestras assim contribuem formando alunos e levando à eles a conhecer a poesia e os poetas consagrados, dado o tempo de hoje que os jovens não gostam de ler, e vcs estão incentivando através desse trabalho. Muito bom!

    Tenha uma abençoada semana.
    Bjs!

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    1. Obrigada Dina, seja bem vida, feliz em lhe ver aqui. Volte sempre, abraços

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