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sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Rachel de Queiroz (1910 - 2003)



Rachel de Queiroz
(1910 - 2003)

Rachel de Queiroz, romancista e cronista brasileira. Nasceu em Fortaleza, Ceará, e residiu na cidade do Rio de Janeiro.
Com a publicação de O quinze (1930) tornou-se a única representante feminina do "romance do nordeste". Nos livros seguintes, João Miguel (1932), Caminho de pedras (1937), As três Marias (1939), foi aperfeiçoando sua temática social e regionalista. Dora, Doralina (1975) e Memorial de Maria Moura (1992) são seus romances mais recentes: "De mim ele só chegava perto quando de serviço ou chamado meu. Nunca me tocou nem com a ponta do dedo, nunca também me olhou nos olhos. Nunca me sorriu." Dedica-se ainda à literatura infantil, ao teatro e à tradução.
No início da década de 1970, a Academia Brasileira de Letras modificou seus estatutos para receber Rachel de Queiroz, primeira acadêmica mulher do Brasil.
Faleceu em 04 de novembro de 2003.



Geometria dos Ventos
Rachel de Queiroz


Eis que temos aqui a Poesia,
a grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio.
como o sangue nas artérias,
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada -
feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se arranca da terra
já dentro da geometria impecável
da sua lapidação.
Onde se conta uma história,
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura,
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao
mesmo tempo
fácil e insolúvel da sua tragédia.
Sim, é o encontro com a Poesia.
****


A Ocupação e a Sensação Angustiosa de Espera
 

Agora, que já tinha um serviço, João Miguel passava parte do dia fazendo longas tranças de palha, ao lado do milagreiro, que se sentava à soleira da porta, esculpindo os seus pedaços de anatomia.
A sensação angustiosa de espera, que tanto o martirizara nos primeiros dias de prisão, ia-se aos poucos abrandando.
Porque o que mais o torturava, a princípio, fora a indecisão sobre o seu destino, entregue às alternativas de bem ou de mal da justiça, feito um pau largado na força de uma correnteza.
A atitude permanente de festa, que sentia necessária, afligia-o como uma insônia.
Imaginara, no começo, que, ali, preso, tudo conspiraria para o comprometer, para o desgraçar, para o prender mais.
Porém, com o correr dos dias, com a oportunidade de um trabalho manual, ia-se suavizando a tensão nervosa. E mormente o tranqüilizou a indiferença geral por ele e pelo seu crime.
Já se entregava à sorte, disposto a tudo, até a ficar ali longos anos, os melhores anos de sua vida...
O milagreiro, que era solto ali dentro, não lhe abandonava a porta, sempre agarrado a um pedaço de pau e ao canivete, sempre seguido do enxame de cavacos.
Já lhe contara todos os seus passos, as paixões, as ambições, as boas e más fortunas, uma viagem ao Amazonas...
João Miguel notara:
- Também já andei lá no Amazonas...
- Você donde é?
- Dos Inhamuns. Mas vim de lá pequeno. Desde que me entendo, corro mundo...
O outro abanou a cabeça.
- Pra vir acabar aqui...
- Acabar, uma história! Deus me livre de me acabar aqui!
O milagreiro encolheu os ombros e, na sua voz comprida, de vogais intermináveis, arrastou:
- Ora, eu, que só peguei oito anos, nem me lembro mais de sair... Quanto mais você, que ainda nem foi a júri...
E o homem contara o desespero dos seus primeiros dias de cadeia, a sua fúria:
- Mas, depois, se vai indo e acostuma. Você é até dos mais mansos. Parece que nasceu aqui... Cadeia acaba sendo o mesmo que o Amazonas... Você, que já andou por lá, por força se lembra. Tem uns que, é só chegar, num instante se acostumam. Outros nunca passam de brabo...
João Miguel dissera apenas, torcendo cuidadosamente a palha:
- Uma coisa é ser, outra é parecer...
Porém, o fato é que a sua resignação era mais real do que simulada. Como todo caboclo, tinha, na alma, essa crença na fatalidade que tanto ordena o bem como o mal. Estava ali porque era destino... se cumpriu...
Não pensava no morto. E, quando, a um puxavante da consciência, tentava recordá-lo, sentia-o estranhamente afastado de si.
Que tinha ele, ali, agora, com esse desconhecido que morrera?
É verdade que a facada fora sua. É verdade. Mas por que não lhe ficara nenhuma marca do gesto?
A grande causa de esquecimento, a responsável pela pouca contrição da gente e a pouca constância no arrependimento, é o tempo não ser, como o espaço, uma coisa onde se possa ir e vir, sair e voltar... O que se passa no tempo, some-se, anda para longe e não volta nunca, pior do que se estivesse do outro lado de terra e mar.
Afinal, quem pode manter, num espelho, uma imagem que fugiu?
O Zé Milagreiro chegou a contar até a história da sua morte.
- Tinha meu roçadinho, Seu João... Eu mesmo broquei, encoivarei. Eu mais a mulher, rapando todo o dia com um caquinho de enxada, na terra braba. Inverno bom de legume, foi um milho e um feijão famoso. O milho já estava bonecando, o feijão florando. E o desgraçado todo o dia abria um buraco na ramada, metia a burra dentro. Eu reclamava, tapava a cerca. No outro dia, ia ver, estava a mesma presepada: a cerca furada e a sem-vergonha da burra estragando tudo. Fui ao miserável, perguntei se ele não tinha sentimento, se pensava que o suor dos outros era mijo da mãe dele... E aí pegou palavra daqui e de lá, e eu acabei lhe enterrando tanto assim de faca nos peitos. Pegou mesmo no coração.
Zé Milagreiro, enquanto conversava, acabava de esculpir uma cabeça de homem quase em tamanho natural, de perfil tristonho e pontudo, a cara fina e doentia de uma visagem.
Marcava apressadamente os olhos, a fenda estreita da boca, as pequenas orelhas duras e redondas como seixos, porque a encomenda era vexada, de longe, de um homem de Sobral que se botava pra Canindé: um doido corrido, que São Francisco curara, e ia, com a cabeça de pau, remir a sua dívida com o santo.
E, alisando no crânio chato do milagre a curva do cabelo na testa, Zé Milagreiro acrescentou:
- Eu não sou nenhum doido, pra pensar que é muito certo se matar um vivente... Mas também tinha a minha razão... E olhe, Seu João, só me botaram na cadeia porque os doutores pegaram com muita conversa, com história que o outro era um pobre pai de família...
Seguro na mão do preso, o grande ex-voto de pau, suposta imagem do louco, fitava no vago o olhar estranho.
- Como se eu também não fosse pai de família...
João Miguel, que já costurara com a trança toda a copa do chapéu e passava à aba, indagou:
- E que é feito da sua família, Seu Zé?
- Andam por aí espalhados lá no Riachão, onde eu morava. A mulher vive de fazer renda, de apanhar legume na safra; o menino mais velho deu-se aos padrinhos... uma mocinha que eu tinha casou com um cabra desgraçado, filho na desgraça...
Chegou junto deles um rapaz moreno, alto e magro, com as mãos nos bolsos da blusa desabotoada, um lenço vermelho no pescoço.
Acercou-se da porta onde os dois conversavam. Parou uns instantes, olhou a cabeça de pau, e lembrou:
- É ver o soldado Chicute! Escritinho! Também nunca vi diabo da cara de milagre como aquele!...
Afirmou-se novamente no ex-voto, riu-se:
- Eh! Eh! Adeus, Chicute! - e saiu assobiando.
João Miguel comentou:
- Depois que estou aqui, é a segunda vez que vejo esta criatura.
- É porque ele vive lá fora, mais os soldados. Como não é criminoso de morte, tem mais vantagem que os outros.
- E por que é que ele está aqui?
O outro baixou a fala:
- Quando vem alguém, e pergunta por que é que está preso, ele diz que foi por causa de umas cacetadas que deu noutro... Natural, tem vergonha de dizer que é ladrão...
O milagreiro murmurou, mais baixo ainda:
- Você não vá dizer que fui eu que lhe contei, que ele se dana. Foi ele que arrombou a loja do velho Lulu, e carregou tudo, até o dinheiro da gaveta de segredo. E nunca disse a ninguém onde escondeu o roubo...
- É engraçado ele não querer que a gente saiba!... - E João Miguel riu. - Na minha mente, quem estava aqui não se importava de contar mais nada...
- Por quê? Pois eu acho muito direito ele não querer contar...
Quem é que gosta de ter fama de ladrão, criatura? Mas antes matar do que pegar no alheio...
Dados os últimos cortes na cabeça, Zé Milagreiro separou-a pelo pescoço e ficou fazendo com o canivete, aqui, além, uns retoques.
João Miguel concluiu também os derradeiros pontos na palha.
E, pronto o chapéu, quebrou-lhe a aba na frente, pô-lo subitamente na cabeça polida do milagre.
- Olhe, Seu Zé, como o bicho está gaiato!
Vendo a estranha figura encarapuçada, dum ridículo singularmente doloroso que sugeria uma maldade ou uma profanação, Zé Milagreiro arrancou-lhe rapidamente o chapéu, como se receasse um castigo:
- Deixe disso, Seu João! Pode o santo se zangar!

*****

 A Arte de Ser Avó

Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo...
Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.
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E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é "devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis. Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avó, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto...
No entanto - no entanto! - nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do garoto. Não importa que ela, hipocritamente, ensine o menino a lhe dar beijos e a lhe chamar de "vovozinha", e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante dos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe de comer, dá-lhe banho, veste-o. Embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.
Já a avó, não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de pirulitos. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso nos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer roquetes, tomar café - café! -, mexer no armário da louça, fazer trem com as cadeiras da sala, destruir revistas, derramar a água do gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com o lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado! Fazer má-criação aos gritos e, em vez de apanhar, ir para os braços da avó, e de lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna...
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Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém, esses prazeres não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós, com os seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!
E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz: "Vó!", seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.
E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe o castiga, e ele olha para você, sabendo que se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade...
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho - involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague...
(O brasileiro perplexo, 1964.)

Vale a pena conhecer as obras dessa fantástica mulher brasileira.
Fontes:
http://www.vidaempoesia.com.br/racheldequeiroz.htm

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