ECOS E NARCISO
Eco era uma bela ninfa e, como todas
as outras, era responsável pelos cuidados de um vale, com um bosque, por onde
corria um regato de águas límpidas. Possuía uma característica única: sua
prolixidade. Aliás, falava e falava e inventava histórias que prendiam a todos
que a ouviam. Com voz agradável, era sempre solicitada a falar e encantar suas
companhias. Mas, ao contrário de outras que se divertiam às escondidas com
Zeus, ela não tinha intenção de ter ninguém ao seu lado, apesar de ter muitos
pretendentes. Sempre ajudava a deusa Ártemis em suas caçadas e entretinha as
pessoas e os animais com sua voz encantadora e histórias sem fim, enquanto a
deusa surpreendia suas caças. Sua beleza também a ajudava quando Afrodite a
convidava a passear.
Um dia, Hera, a esposa de Zeus,
desconfiada das saídas do marido com as ninfas, chamou-a para dar explicações.
Enquanto ela falava e tentava distrair a deusa, o insaciável Zeus a traía com
outra ninfa. Não deu outra, a vingativa Hera descobriu o ardil e condenou-a
para sempre a nunca começar um diálogo e só repetir apenas as últimas palavras
das frases que os outros diziam. Eco perdeu, assim, seu mais precioso dom.
Tomada pela tristeza, passou a vagar pelo bosque, cada vez mais solitária e se
escondendo de todos.
O regato que lhe cabia cuidar, em
alguns trechos, era margeado por verdes campinas, onde os pastores vinham
saciar a sede de suas cabras e ovelhas. Escondida, observava de longe as
atividades daqueles mortais e a simplicidade de suas vidas. Foi quando notou
que um deles tinha uma beleza tão divina que não lhe podia passar despercebida.
Ao encontrar outras ninfas, ouviu que elas comentavam a respeito do jovem e
belo pastor, que também nunca se apaixonara por ninguém e ainda se recusava a
sair com elas. Seu nome era Narciso.
Esgueirando-se por entre as árvores,
arbustos e rochas, todos os dias seguia os passos do pastor, de manhã ao
entardecer. E a cada dia sentia-se mais e mais enamorada. Até que um dia
Narciso notou que estava sendo seguido e perguntou quem estava lá. Sem poder
lhe falar, Eco se mostrou e, mediante alguns gestos, tentou lhe explicar que o
amava muito. Ele, não só não entendeu como a julgou louca, deu de ombros e saiu
com seu rebanho o mais depressa dali.
Eco se retirou para o canto mais
profundo daquele vale e chorou por muitos dias. Então, cansada de seu
infortúnio, orou para Afrodite e implorou a ela que lhe tirasse a vida.
Comovida por sua tristeza e por aquela voz tão doce e melancólica, a deusa se
apiedou dela. Conversou com Ártemis e, juntas tramaram um plano para ajudar a
pobre Eco. Roubariam um raio de Zeus e nele colocariam um encanto: aquele que o
recebesse se apaixonaria perdidamente pela primeira pessoa que olhasse.
Combinaram com Eco que ficasse
escondida e à espreita até que Narciso viesse dar de beber ao seu rebanho.
Então, Ártemis, com sua mão certeira, atiraria o raio no pastor e Eco
apareceria em sua frente. O plano era perfeito.
Todavia, assim que Ártemis lançou o
raio em direção ao jovem, ele se debruçou sobre o regato para beber e viu sua
própria imagem refletida na superfície da água. Foi a primeira pessoa que olhou
e, pelo encanto, a primeira também por quem se apaixonou. Ficou a admirar
aquela imagem até o escurecer e sem entender o que se lhe passava. Voltou para
casa e, sem dormir, esperou que clareasse o dia. Correu depressa para o regato
e continuou a olhar para aquele belo rosto.
Eco, inconformada, observava que todos
os dias aquele rapaz vinha e se debruçava no mesmo lugar. Cada dia mais magro e
pálido. Não comia mais e nem dormia. Abandonara o rebanho solto pelo campo.
Definhou tanto que seu último ato foi cair desfalecido ao encontro do seu amor
e submergir na fria água do regato.
Nenhum detalhe foi perdido pela pobre
ninfa. Ela gentilmente recusou que as outras intercedessem por ela e também
rejeitou a ajuda das deusas amigas. Mais uma vez se retirou para o interior do
vale e, sabendo que não podia morrer, imaginou o seu eterno suplício. Nada mais
fez e, sem comer, beber e dormir, também definhou. Tanto entristeceu e definhou
que seu corpo começou a desaparecer, até que lhe sobrou apenas a bela voz, além
da maldição de Hera, de repetir a última palavra de alguém.
Tomada de emoção e saudade daquela
bela ninfa, Afrodite fez brotar, no lugar onde teria um encontro de amor, um
arbusto muito verde, com flores de um azul sem igual e de perfume único.
Existem duas versões mais debatidas
sobre o mito de Narciso. Uma, menos tradicional, oriunda do Poeta grego
Pausânias, diz que Narciso teria uma irmã gêmea e que ela era o seu
reflexo. Outra, considerada a versão original do mito, compreende que
Narciso era uma das criaturas mais lindas já existentes. Por causa de
sua beleza, as mulheres ficavam encantadas pelo jovem mancebo, filho de
Cefiso e Liríope.
O nome Narciso (tema narkhé = torpor,
como em narcótico para nós) já parece indicar o que sua existência
significaria: sua beleza entorpece, atordoa, embaraça a todos aqueles
por quem ela é vista. Mas também, por sua ascendência, Narciso tem
estreita relação com a ideia de água, escoamento e fertilidade, por
parte de pai, bem como mansidão, voz macia e leveza (por parte de mãe).
Tudo isso influenciaria sua vida. Vejamos por quê.
Conta-se que, certa vez, Narciso
passeava nos bosques. Perto dali, a ninfa ECO, que era uma tagarela
incorrigível, acompanhava-o, admirando sua beleza, mas sem deixar que a
notasse. Eco, em virtude de sua tagarelice, foi punida por Hera, esposa
de Zeus, para que sempre repetisse os últimos sons que ouvisse (por
isso, na física, chamamos de eco a reverberação do som). Por sua vez,
Narciso, suspeitando de que estava sendo seguido, perguntou: “quem está
aí?”. E ouviu: “Alguém aí?” Então, ele gritou novamente: “Por que foges
de mim?”. E ouviu “foges de mim”. Até dizer “Juntemo-nos aqui” e ter
como resposta “juntemo-nos aqui”. Toda essa repetição acabou deixando
Narciso angustiado por desejar amar algo que não poderia ver.
Dessa forma, Narciso entristeceu-se e
foi à beira de um lago, onde, de modo surpreendente, deparou-se com sua
imagem nos reflexos da água. Como nunca antes havia se olhado (pois sua
mãe foi recomendada a não permitir que isso ocorresse), enamorou-se
perdidamente, acreditando ser a pessoa com quem estava “dialogando”. Por
isso, tentou buscar incessantemente o seu reflexo, imergindo nas águas
nesse intento, mas acabou morrendo afogado. A ninfa Eco sentiu-se
culpada e transformou-se em um rochedo, vivendo a emitir os últimos sons
que ouve. Do fundo da lagoa, surgiu a flor que recebeu o nome de
Narciso e tem as suas características.
O mito de Narciso e Eco é, até hoje, estudado pelos psicólogos e filósofos. Alguns explicam que o alter ego,
isto é, o outro que nos completa, é buscado fora de si, mas sempre como
um retorno a si mesmo. Essa compreensão mostra o quanto somos egoístas
em relação às nossas necessidades, a ponto de ser possível uma relação
entre um mito da Antiguidade e as sociedades de consumo do sistema
capitalista de produção. Isso porque nesse sistema vivemos em busca de
preencher o vazio libidinal que nos atormenta, redirecionando nossas
pulsões sexuais para a satisfação na aquisição de bens. Ora, é essa
tentativa de satisfação que promove um individualismo exarcebado no
mundo contemporâneo, sendo, por isso, apelidado de sociedade narcisista.
Organização da postagem: Profª Lourdes Duarte
Minha gente que aula mais rica, esclarecedora e que faz uma reflexão da atualidade à luz da antiguidade. Parabéns as duas escritoras por nos brindar com esses textos soberbos!
ResponderExcluirBeijos carinhosos!